sexta-feira, 22 de maio de 2015

Advocacia delirante. Parte I.




No primeiro texto desta coluna, nos apresentamos como dois estudantes vindos de uma formação em AJUP e que, há poucos meses, tornaram-se advogados. Com a inscrição na OAB e prestado o respectivo compromisso (o famoso “juramento”), começamos a nos perguntar: onde chegamos? Ou melhor, até onde poderemos chegar dentre os limites da advocacia?


No geral, o próprio ato de inscrição na ordem, desde a graduação, parecia funcionar como uma fronteira para algo misterioso, como uma permissão com a qual se descobriria todo o conteúdo de uma velha fantasia de saberes e poderes institucionais. A advocacia, de fato, carrega uma simbologia densamente complexa, que ainda nos é difícil compreender. Passamos “para dentro” de algo ainda em grande parte desconhecido.

Cartaz do filme THX 1138
ficção em que a população
se individualiza por códigos
sequênciais em vez de nomes.
Esse algo do qual passamos a fazer parte, porém, começa já a trazer pequenas inquietudes, como quando, de um dia para outro, passamos a carregar o personalíssimo número de inscrição na OAB: esse esperado código, motivo de orgulho para muitos, doravante abeirado aos nossos nomes, feito sua própria sombra até que se encerre o exercício da profissão. Eis a nossa primeira marca  de um ferrete em brasas, pronto para seguir catalogando as sucessivas ninhadas que se somarão à seleta estirpe.

Pois bem. Esse texto marca uma série de escritos sobre as nossas primeiras experiências com a advocacia, nos quais pretendemos colocar em debate teorias, delírios e coisas reais.


Comecemos, aqui, com uma pequena incursão etimológica. É bastante aceita a tese de que a palavra advogar, a partir de origens latinas ad vocatus, seria equivalente a ser chamado para junto de. Seríamos então esse algo no particípio do passado? Talvez esteja superada em grande medida essa noção, que até poderia ser cômoda ou tranquilizante. Interessa-nos saber, por outro lado, quanto esse sentido original de passividade permanece nas atuais condições e, ainda, como se coloca enquanto possibilidade conceitual na história em aberto.


Rendemos, dessa forma, homenagem a Florestan Fernandes ao afirmarmos que, assim como qualquer categoria social, o conceito de advocacia aparece saturado em sua especificidade histórica atual. É necessário, portanto, não apenas desvelar o remoto aparecimento dessa palavra em uma Roma Antiga, mas investigar o que está em jogo quando afirmamos à sociedade atual, diariamente, a nossa condição de advogados.
 
O debate terminológico não nos interessa por si mesmo.
É que o uso das palavras traduz relações de dominação. [...]
Ora, em uma sociedade de classes
da periferia do mundo capitalista e de nossa época,
não existem "simples palavras”.
- Florestan Fernandes¹


Quando afirmamos tal condição e buscamos saber a real projeção de nossa existência advocatícia, deparamo-nos, novamente, com a pergunta: até onde poderemos chegar considerando os limites da advocacia?


Não nos propomos, é certo, assumirmos simplesmente a identidade de advogados, chamados para junto de quem quer que seja. Pois, muito antes de prestarmos um compromisso formal com a ordem, assumimos um compromisso exatamente com quem está à sua margem ou à sua exterioridade. Aí talvez possamos encontrar o princípio de um conceito que nos é caro e sobre o qual, no futuro desta coluna, ainda nos caberá desenvolver melhores aprofundamentos: a advocacia popular.



Oswaldo Goeldi: Solitário
Xilogravura pertencente ao álbum 
10 Gravuras em Madeira de Oswaldo Goeldi.
Rio de Janeiro, 1930.
Nesse campo específico do atuar jurídico, ao qual nos filiamos, torna-se ainda mais difícil tatear quais seriam os limites do exercício da advocacia como um todo, ainda mais quando nosso “número da OAB ainda é novo” e somos apenas jovens advogados, com muita inquietude, mas sem muita experiência. Porém, a mesma práxis que nos inquieta remete nosso olhar ao alto, para o horizonte no qual se coloca a busca pelo transbordamento dos limites vigentes, busca que se revela conceitualmente utópica, todavia, concreta.


A advocacia popular implica percebermos e enfrentarmos uma cotidiana não afirmação do Outro que nos chama para junto, negatividade revelada a partir da advocacia junto a movimentos sociais, ocupações urbanas etc. (eis a concretude), e ao mesmo tempo implica apostar na possibilidade – também dentro da ordem, da advocacia e da operação da lei – de se conquistarem significativas e importantes mudanças sociais (eis a utopia).

Mas isso não nos basta. É preciso delirar galeaneamente alla de la infamia.

Ante a angústia de desvendar os limites da advocacia, percebemos que trabalhar com esta legalidade posta e operar este direito institucionalizado significa por si só, considerando a especificidade capitalista do direito moderno, reafirmar a condição de negatividade desses que nos chamam para junto. Damos conta que a história da humanidade como nos é contada é a história da legalidade de injustiças. Portanto, para fins de extrapolar os limites dessa condição histórica, necessário é pensar em uma possível justiça desde a ilegalidade².


– Ora, que advogados são esses, que mal se inscreveram na “ORDEM” e já preferem atuar pela ilegalidade? – logo nos diria o advogado não delirante.


A preferência pela ilegalidade – lhe diríamos – vem do delírio que muitas vezes falta aos juristas, vem da própria práxis de uma advocacia popular que, consciente de seus limites positivados, descobre na extrapolação desses mesmos limites a possibilidade ontológica da inversão da negatividade do ser, do Outro, para sua positividade.  


Para os espantados, que podem pensar como o advogado que foge do delírio, explicamos que tomamos a in-legalidade não como “aquele que comete um crime contra a lei vigente”³, mas sim como a expressão genérica de algo que vai mais adiante do projeto vigente. O prefixo “in-”, que por assimilação assume a forma de “i-”, não expressa necessariamente contrariedade, porém, no caso, a falta de(assim como na palavra inexistente). Ou seja, ao afirmarmos que a justiça pode estar na ilegalidade, queremos dizer que, na conjuntura atual, na ordem vigente, é preciso pensar em novas formas de se compreender o que é justo, não (apenas) contra a lei, mas principalmente para além de sua própria insuficiência.

O delírio na advocacia popular, portanto, reside na fundamentação da própria práxis em uma ilegalidade projetada como abertura a mudanças sociais. Faz-se delirante por, mantendo os pés no chão, mirar o horizonte e pensar mais além do projeto vigente, tendo como fundamento as novas possibilidades de sociabilidade que excedem os limites da juridicidade moderna.


Nessa caminhada, já nos basta que seja inevitável carregarmos um número de série que nunca irá se apagar nem se alterar. Frente a isso, optamos pelo delírio e apostamos na possibilidade de participarmos das  transformações do presente no qual estamos imersos.  


[...] Cambia el rumbo el caminante
Aúnque esto le cause daño
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño [...]
- Mercedes Sosa


O resultado dessas escolhas é, para além da advocacia, a possibilidade de superá-la com o sentido de esperança em uma história aberta, esse recorrente tema da poetisa argentina, autora da música com a qual encerramos a primeira parte desta reflexão como marco de nossa aposta no cambiar de este mundo.



_______________________________
[1] FERNANDES, Florestan.“O que é revolução”. Em: PRADO JUNIOR, Caio; FERNANDES, Florestan.Clássicos sobre a revolução brasileira. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 55-148.

[2] DUSSEL, Enrique. Para una Ética de la Liberación Latinoamericana. Tomo II. Siglo XXI, 1973. p.66

[3] DUSSEL, Enrique. Para una Ética de la Liberación Latinoamericana. Tomo II. Siglo XXI, 1973. p.71


[4] Verbete in-. Aulete Digital. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/in->. Acesso em: 20 mai 2015.

Nenhum comentário:

Postar um comentário