quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A crítica cotidiana ao direito entre a capinagem e o fuzilamento

O terceiro texto da coluna AJP naUniversidade, fruto das discussões realizadas pela turma de “Teorias Críticas do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da Especialização em Direitos Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás, ataca questão chave para todo assessor jurídico popular que pretende ter uma visão crítica da realidade: é preciso, como diz o jovem advogado popular do MST, Diego Vedovatto, fazer um “trabalho cotidiano de capinar no direito moderno e colher alguns frutos e, ao mesmo tempo, em perspectiva geral também fuzilá-lo”. No dia em que, sugestivamente, se completam os 490 anos da execução do último imperador asteca, Cuauhtémoc, a 26 de fevereiro de 1525, assassinado a mando de Cortez, o conquistador espanhol que dominou o México, apresentamos esta potente reflexão sobre o direito, entre a capinagem e o fuzilamento. Boa leitura!

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Do Barraco de Lona ao Fórum, o exercício da Crítica Cotidiana ao Direito

Diego Vedovatto
Advogado popular no Rio Grande do Sul
estudante da Turma de Especialização em Direitos Sociais do Campo - Residência Agrária (UFG)

Militante do MST capina, durante ocupação
Apesar de difícil, ser advogado popular é o maior barato. Porque, além de não ter um vocabulário reduzidamente chato como os especialistas engomados de plantão, temos muitos amigos, nos divertimos bastante e, de quebra, podemos vivenciar concretamente – em debates, estudos, bebidas e até mesmo no atuar judicial cotidiano – o gostoso sabor da crítica diuturna ao Direito.

Não precisa ser especialista na área, mas, simplesmente, um trabalhador reflexivo, pra logo perceber a distinção entre, grosseiramente resumindo, duas perspectivas nesse laborar: de um lado a perspectiva reprodutora do dogmatismo teórico positivista moderno, com todo seu fundamento formalista, compreendendo, cheio de pompas, que o Direito seria a expressão elevada de um campo autônomo de relações jurídicas lógicas, com espaços interpretativos próprios, realizados sob um texto registrado em papeis oficiais (as leis), distanciando-se, portanto, da moral, e ainda por meio do qual seria possível produzir a melhor justiça racionalmente; e, de outro, uma compreensão (sinceramente mais complexa e, às vezes, um pouco chata) que procura uma visão mais estrutural sobre essas relações, dizendo que o buraco é mais embaixo, e que toda forma jurídica, como tal, é expressão do complexo sistema estrutural de produção e reprodução da vida social, com base nas relações econômicas desse determinado sistema, propondo, ao fim, inclusive, até sua extinção.

É, acreditem se quiserem! Filio-me à segunda, obviamente.

Pensemos que todo o Direito traduzido na lei é produzido a partir de necessidades materiais concretas, fruto das contradições de classes existentes e, assim, para regulação da vida social. Não apenas no sentido punitivo, mas especialmente na regulamentação das relações de troca, que envolvem propriedade em forma de mercadoria, porque o Direito não nasce da abstração idealista dos indivíduos, mas da realidade histórica em que se encontram.

De outra banda, todos os direitos que se insurgem das classes exploradas ou resistentes à reprodução dessa exploração – seja dos operários, camponeses, ou indígenas – cumprem a função de genuinamente produzir a crítica interna e externa ao sistema. Ou seja, fazem com que a atuação dos profissionais nele submersos tencione mudanças internas a essa lógica e, no sentido mais amplo, promovam também a crítica estrutural a essa lógica, contribuindo para sua extinção.

Os Direitos disso, daquilo, e daquilo outro que reivindicamos em qualquer lugar, nas ruas, campos, fábricas e bares, nasce das relações sociais entre os seres, sempre emergidos das relações capitalistas concretas, em que tudo (melhor dizendo, quase tudo) passa a possuir forma de mercadoria e tradução em forma jurídica.

Guerrilheiras da FMLN empunhando fuzis, em El Salvador 
Com o surgimento dessas relações econômicas de produção, e da respectiva tradução jurídica, surgiu também sua contradição. Desde a crítica marxista, até todas as outras perspectivas teóricas que buscaram, e buscam, transformar o direito em defesa dos trabalhadores e da luta social para mudança da realidade, encontramos ferramentas teóricas que ajudam nesse trabalho cotidiano de capinar no direito moderno e colher alguns frutos e, ao mesmo tempo, em perspectiva geral também fuzilá-lo.

Como dito, há de se lembrar que essas novas possibilidades emanam a partir dos conflitos sociais, e é isso que nos dispomos a fazer popularmente: criá-los, interpretá-los, compreendê-los, situá-los numa perspectiva de libertação das amarras que o atual sistema lhes impõe.

Ao defender agricultores sem-terra na ocupação de uma propriedade rural improdutiva, no atuar teórico e prático da assessoria popular, que vai desde a conversa com as famílias, a negociação com a polícia, a denúncia para a imprensa e a redação da peça judicial de defesa, por exemplo, além de comer bolo frito e contar “causo” numa roda de conversas no acampamento, desenvolvemos formas de disputar o direito dentro do direito com conteúdos externos a ele, buscando espaços que permitam na própria ordem jurídica moderna o reconhecimento “de tais novos direitos”, para esses que não os têm. E, além, lá no fundo do sentimento, e do atuar político abstrato, buscamos a explosão desse próprio direito, sua completa extinção, para dar lugar ao surgimento de relações sociais novas, verdadeiramente livres.

É, enfim, nessa insurgência de direitos que brotam da vida e clamam por liberdade, traduzidos em versos simples, que vivemos e cantamos.

“Não tem preço, a liberdade não tem dono
Só quem é livre sente prazer em cantar
Se um passarinho canta mais quando está preso
É no desejo de um espaço pra voar”

(Cativeiros, de Antônio Gringo)


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Leia também:
A atuação do advogado popular, no fio da navalha, por Ivo Lourenço da Silva Oliveira
Marx e o não-direito: direito e marxismo, por Ricardo Prestes Pazello

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