quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

ANADEP e RENAP lançam livro "Defensoria Pública, Assessoria Jurídica Popular e Movimentos Sociais e Populares"

Em novembro de 2013, a Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) e a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP) lançaram o livro "Defensoria Pública, Assessoria Jurídica Popular e Movimentos Sociais e Populares", fruto de esforço coletivo de defensores públicos e assessores jurídicos populares, organizado por Amélia Rocha, Ana Carneiro, Luciana Zaffalon, Priscylla Joca, Rodrigo de Medeiros e Talita Furtado.

A obra conta com mais de trinta artigos, escritos por pesquisadores-militantes das mais diversas regiões do país. Destaque-se que entre os organizadores e os autores constam vários membros do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), o que demonstra a interface entre teoria e prática. São eles: além de entre os organizadores Priscylla Joca e Rodrigo de Medeiros, também Allan Hahnemann Ferreira, Cleuton Freitas, Érika Macedo Moreira, Assis da Costa Oliveira, Carolina Vestena, Rosane M. Reis Lavigne, Daniel Valença, Shirley Andrade e Ricardo Prestes Pazello.

A nota especial é o prefácio de Carlos Frederico Marés (também membro do IPDMS), dedica à figura histórica do advogado popular e teórico do direito insurgente Miguel Pressburger. Segue o prefácio na íntegra:


ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR: O LADO DO DIREITO FICA À ESQUERDA


(prefácio ao livro de ROCHA, Amélia; CARNEIRO, Ana; ZAFFALON, Luciana; JOCA, Priscylla; MEDEIROS, Rodrigo de; FURTADO, Talita. (Org.). Defensoria Pública, Assessoria Jurídica Popular e Movimentos Sociais e Populares: novos caminhos traçados na concretização do direito de acesso à justiça.  Fortaleza: Dedo de Moças, 2013)


A defesa de camponeses e outros oprimidos sempre foi uma advocacia de risco. Risco de perder a liberdade, a integridade física e, não raro, a vida. Miguel Pressburguer[1] ensinou a minha geração de advogados populares que não podemos saber pouco direito, temos que saber muito, conhecer a lei e seus teóricos em cada detalhe e usar a lei quanto mais perto de sua literalidade, melhor. É o positivismo de combate, defendia. A ideia de Pressburguer, aprendida na luta judicial diária em defesa dos camponeses, nas leituras de livros possíveis na cadeia política e no estudo consciente do direito e do marxismo, era de que deveríamos usar a lei e a doutrina conservadora em sua literalidade de justiça. Todos sabemos que a liberdade, igualdade e justiça são molduras desusadas do sistema, mas temos que insistir para que valham para os camponeses, dizia. Para se fazer isso, é preciso uma postura de esquerda, isto é, crítica, insurgente, inconformada.

Naquele tempo, ainda antes de Miguel criar a entidade, depois chamada de ONG, “Apoio Jurídico Popular” - AJUP – quem defendia camponeses, índios e outras populações do campo contra latifundiários e grileiros era chamado de comunista, tivesse ou não atuação junto ao Partido clandestino, mas pesando sempre as penas a eles cominadas e a rudeza das botas da repressão política. Cada advogado de pobre tinha a experiência pessoal de prisões políticas e, não raro, torturas. E a única arma que podia esgrimir era a interpretação da lei, do espírito de justiça que embalava ou deveria embalar a lei.

Ter lado não é apanágio dos advogados populares. Todo advogado tem lado, não existe advogado neutro. Muitos, porém, tem o lado de quem primeiro o procura, não tendo muita importância a razão da causa, a defesa do cliente é sua profissão, são os chamados profissionais, ou liberais. Outros escolhem primeiro o lado, depois, se houver, o cliente; uns escolhem o lado por pura especialidade, só fazem determinada coisa ou ato; outros, por razão política, como Miguel Pressburguer e todos os outros advogados populares e assessores jurídicos de movimentos sociais.

A escolha do lado por razão política é a mais difícil e menos “profissional”, quer dizer, menos rentável. É uma opção de militância. Nessa militância, os imprescindíveis são os que fazem a opção por toda a vida, como dizia Brecht, e como fez Pressburguer.

A opção, porém, não é a mesma sempre. Durante as ditaduras militares na América Latina, a militância era a luta, no caso dos advogados, jurídica, contra as ditaduras, pelas liberdades, pelos direitos civis. Na medida em que o tempo passou, a luta pelos direitos foi se modificando e se sofisticando. Se antes era pelas liberdades individuais, depois passou a ser pelos direitos coletivos de pessoas, grupos, comunidades, povos e, finalmente, tudo isto juntado ao meio ambiente. Este foi um fenômeno latinoamericano e para isso foram criadas instituições como o ILSA - Instituto Latinoamericano de Derechos Legales Alternativos, hoje camada de Instituto Latinomaericano por uma Sociedade e um Direito Alternativos, com sede em Bogotá e se tornou uma rede de advogados trabalhando pelas liberdades civis e depois pelos direitos coletivos.

A defesa de direitos coletivos indígenas, quilombolas, camponeses foi ganhando espaço na advocacia popular, sem descurar das demandas individuais, especialmente combatendo a cada vez mais clara criminalização dos movimentos sociais que se realiza na perseguição penal de militantes. Este deslocamento de causas acompanha um crescimento da democracia na região. Quanto mais democracia se consegue no plano político mais estreitamento parece haver no Judiciário, cada vez mais julgando a favor da propriedade privada e contra os movimentos sociais. Curiosa contradição da democracia burguesa, basta se ter liberdade para lutar, o sistema policial-judiciário se insurge contra quem luta.

Sociedade contraditória, ao mesmo tempo em que a interpretação judicial diminuiu os direitos sociais e coletivos, a sociedade ampliou o espaço de atuação dos movimentos sociais. A advocacia e a assessoria jurídica popular se estenderam, se qualificaram, cresceram, surgiram redes, ganharam professores, teóricos, Congressos, encontros e respeitabilidade. Ganhou força a articulação. Mas continuou pequena frente a sempre abusivo avanço da fronteira agrícola e do capitalismo no campo.

Afinal a defesa contra as injustiças individuais e coletivas se estendeu para o próprio Estado que não teve outra alternativa senão criar as Defensorias Públicas. Mais do que criar, aceitar o novo sentido que se deu e está se dando a elas. De fato, visto de um ponto de vista mecanicista do Estado, o papel das Defensorias Públicas seria atender os pobres, individualmente, em suas “pretensões resistidas”, permitindo que chegassem com suas demandas individuais ao Poder Judiciário, estruturalmente caro, complexo e inacessível senão a iniciados, mas, em todo caso aberto para qualquer um, como no conto de Kafka “Diante da Lei”. Mas as Defensorias foram além e entenderam seu papel de defensores dos direitos e interesses coletivos, sociais e ambientais, isto os aproxima das assessorias e advocacias populares e os distancia do interesse imediato do Estado. É neste jogo dual que se definirá o futuro das Defensorias e, por causa deste jogo, nem os advogados populares, nem as assessorias jurídicas podem diminuir sua atuação e não podem nem pensar em deixar toda a defesa popular para as Defensorias, nem as Defensorias podem se submeter aos interesses do Estado e seus governantes. Aliás, a luta contra uma Defensoria Pública Popular e Coletiva, se faz sentir em muitos Estados brasileiros e, inclusive, em decisões judiciais que tentam limitá-la a uma advocacia que não disputa terra, moradia, meio ambiente e populações tradicionais. A resistência está se fazendo sentir com firmeza e as Defensorias Públicas não abrem mão de, cada vez mais, assumirem a defesa do coletivo.

Na defesa dos direitos coletivos, da sociedade e das comunidades há um permanente, reiterado, insistente confronto com os direitos individuais, especialmente o de propriedade, por isso, o lado escolhido pelos defensores, advogados populares, assessores dos movimentos sociais não pode ser senão o lado esquerdo do direito, como direito insurgente, achado na rua, positivista de combate, alternativo no sentido mais profundo da palavra, radical, porque toma as coisas pela raiz.

Este livro, dividido em quatro partes dá conta exatamente desta necessidade e desta disputa no seio do Estado. Em cada uma de suas partes o leitor viajará por este complexo mundo em que as jovens Defensorias Públicas se irmanam as já calejadas advocacia e assistência jurídica popular. Aqui se lerá teoria, experiência e prática do mundo da defesa dos direitos coletivos dos movimentos sociais, o que já é um êxito e os caminhos ou descaminhos que faltam para atravessar a ponte e se aproximar de um mundo mais justo e mais puro em que a Justiça do Estado exista apenas para impedir a injustiça.

Por isto entendo que este livro, que alimenta nossa esperança porque é escrito por jovens, me lembra os velhos juristas insurgentes, aos quais, com o nome de Miguel Pressburguer rendo uma emocionada homenagem.

Curitiba, outubro de 2013.
Carlos Marés[2] 



[1] Thomaz Miguel Pressburger foi advogado popular, coordenador do Instituto Apoio Jurídico Popular, foi diretor do Departamento de Pesquisa e Documentação da OAB/RJ, no Rio de Janeiro – RJ, assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra do Rio de Janeiro e nacional. Faleceu em 13 de julho de 2008. Ver:  "Thomaz Miguel Pressburger, presente!" 
[2] Carlos Frederico Marés de Souza Filho. Doutor em Direito do Estado. Professor Titular de Direito Agrário e Socioambiental da PUCPR. Fundador do Núcleo de Direitos Indígenas. Sócio fundador e primeiro presidente do Instituto Socioambiental-ISA. Membro diretor do Instituto Latinoamericano por uma Sociedade e um Direito Alternativos – ILSA. Membro diretor do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP. Procurador do Estado do Paraná.


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