sábado, 2 de julho de 2011

A Vila Chocolatão e o exemplo negativo


Há dois anos atrás, neste blog da Assessoria Jurídica Popular, publiquei uma postagem sobre o trabalho do Grupo de Assessoria Justiça Popular.
Naquela época iniciávamos o trabalho na comunidade da Vila Chocolatão que então parecia destinada a ser removida do seu local original, do centro da cidade, o que de fato aconteceu no último mês de maio. Este processo, visto como modelo para outras remoções da cidade de Porto Alegre, e suas conseqüências estão descritos abaixo, em matéria originalmente publicada na edição de junho do jornal A Toga (dos estudantes de curso de direito da UFRGS).
Ao final desta postagem, um poema que fiz em decorrência das impressões ao testemunhar a destruição – física e moral – desta comunidade. Fica, pois, mais um registro da violência a que todos nós estamos submetidos nos tempos em que vivemos.
Abraços às companheiras e aos companheiros, Thiago.


A Vila Chocolatão e o exemplo negativo
Thiago Calsa Nunes

A vila localizada no centro de Porto Alegre, identificada pelo nome de Chocolatão devido ao prédio vizinho da Receita Federal, foi extinta no último mês de maio. Por sua grande visibilidade social, sob os olhares dos prédios da Justiça Federal e Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a comunidade que foi uma das precursoras na movimentação para ocupação popular de áreas urbanas para moradia se tornou alvo para servir de propaganda a interesses políticos.
Desde o ano de 2009 atua na vila o Grupo de Assessoria Justiça Popular, integrante do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS, buscando através da educação popular articular soluções para a vida dos moradores, habitando o lugar em precárias condições, servindo de testemunho da luta do povo do Chocolatão. Contudo, uma outra articulação do poder público capitaneada pela Prefeitura de Porto Alegre também atuou de forma a evitar qualquer realização para a vila que não tivesse seu objetivo traçado: Remover a comunidade e fazê-la um exemplo para outras remoções. Desta forma, como se poderá ver, a preocupação com os moradores em si sempre foi secundária.
A situação da vila
A Vila Chocolatão é composta em grande maioria por catadores e recicladores de materiais descartados, os quais são coletados nas ruas do centro da cidade. No entanto, o projeto da Prefeitura indicava uma nova área para a comunidade, que se daria no endereço Avenida Protásio Alves, 9.990, a mais de 10 quilômetros desta área central, o que de início caberia a pergunta: Sendo esta a principal fonte de renda dos moradores, eles não ficariam privados desta atividade na área destinada para a realocação? A resposta é sim, e nisto reside a base de vários dos problemas da comunidade.
No seu trabalho, o GAJUP identificou três focos principais de atuação necessários à comunidade: (1) Moradia, dadas as condições precárias que se encontravam as casas das mais de 240 famílias da vila; (2) Geração de renda, visto que se poderiam pensar outros modos de organização que otimizassem a reciclagem de lixo e outras formas de renda; e (3) Representatividade, visto que havia uma premente necessidade de reorganizar uma associação de moradores e organizações que pudessem dar voz ao conjunto dos moradores.
Desta forma, foram organizadas assembléias e eleições para estruturação de uma associação de catadores e uma associação de moradores, além de debater a questão da moradia entendendo-se a outros fatores que não fossem só relativos a ter uma casa, mas aspectos como acesso à saúde e à educação. Esta estrutura da comunidade era algo necessário que independia de qual a sua localização geográfica, se no centro ou em outra região. Contudo, no projeto de realocação da prefeitura, se configuraram em questões secundárias. O mais urgente, seguindo o padrão das obras na cidade para a Copa do Mundo, era remover a comunidade, fosse como fosse. Se atendesse os direitos humanos, melhor.
Remoção da comunidade
Para denunciar estes aspectos não contemplados pelo projeto de realocação da Prefeitura, no final do ano passado o GAJUP contribuiu para a elaboração de um laudo técnico assinado pela Associação Brasileira de Geógrafos (AGB), que apontava três eixos principais de críticas ao projeto: (1) A realocação não contemplava a todas as famílais, de modo que só havia 181 casas para as 240 famílias da comunidade; (2) A realocação previa um projeto insuficiente para geração de renda, com a construção de um galpão de reciclagem com lixo a ser entregue pelo DMLU, que não atenderia a maior parte dos moradores (sendo esta a única possibilidade de trabalho na nova área sem depender de transporte); e (3) a realocação retirava os moradores do centro para residirem em uma área onde não se tem acesso suficiente aos serviços públicos, como escolas e postos de saúde, o que havia no centro e atendia a comunidade.
Mesmo com a intervenção do Ministério Público Federal e a tentativa de aplacar estas críticas, a realidade é que havia urgência para o poder público em remover a vila, aproveitando a sua ainda precária organização comunitária que poderia lhe dar voz efetiva no processo. Seduzindo lideranças com vantagens específicas, em maio se iniciou a destruição das casas, transferindo os moradores para a nova área, onde receberiam por três meses o auxílio de cestas básicas.
A mídia e o Residencial Nova Chocolatão
Como previsto, a remoção se tornou em uma vedete da Prefeitura, rendendo comerciais na televisão e propaganda ostensiva em jornais como Zero Hora e Diário Gaúcho (o site ClicRBS desponibilizou aos seus usuários um recurso tecnológico de gosto duvidoso, onde se poderia acompanhar com música clássica a destruição das casas), manipulando fatos e intentando fazer uso político dos acontecimentos. O “Residencial Nova Chocolatão” se mostra assim um sonho para os moradores que agora possuem uma casa em condições muito melhores que na velha Chocolatão, servindo de modelo e exemplo para outras remoções. Consome-se, assim, a chamada “higienização” urbana das áreas centrais. O pobre destina-se a trabalhar com o lixo nas periferias da cidade.
Apesar das profecias, pouco ilógicas, de que ao final do subsídio de cestas básicas oferecido às famílias nos três primeiros meses haverá uma série de problemas na nova comunidade, a verdade é que estes problemas – conforme previsto pelo laudo técnico da AGB – já acontecem. Há desemprego, visto que as pessoas não conseguem manter a atividade de catador, tampouco desempenhar outra função. Faltam escolas e creches, sendo que crianças estão sem aulas. Há “especulação imobiliária” sendo que as novas casas populares são vendidas e negociadas entre os moradores, que buscam retornar às áreas centrais. Famílias antes residentes na Chocolatão, porém “excedentes” no projeto da prefeitura, agora são encontradas em ruas do Centro e da Cidade Baixa, sem nenhuma moradia e lutando pela sobrevivência.
Em resumo, os problemas sociais persistem e as críticas previstas ao projeto, embora praticamente ignorados pela prefeitura, se consomem e tendem a piorar a situação social – a despeito do que se assiste em propagandas do horário nobre da televisão gaúcha.
Por que então a necessidade urgente de realocação e tão pouco esforço para garantir uma vida digna onde moravam? É preciso estar longe do centro para que se façam medidas sociais, para impedir que pessoas pobres saiam da periferia? Entre vários motivos que poderiam ser apontados pelos responsáveis da realocação da comunidade, depois de expostos alguns, podemos nos atrever a dizer que um motivo forte é de que a Vila Chocolatão, onde estava localizada, tinha uma característica marcante: Sendo pobre, era feia.
Para os olhares dos funcionários públicos dos modernos prédios da justiça ao redor, a vista das casas pobres das famílias do Chocolatão era algo insuperável, que deveria ser afastado deste centro de decisões jurídicas. O jornal A Toga, sendo produzido pelos estudantes de Direito da UFRGS, traz, portanto, a reflexão: Antes de querermos mudar o que nos aparece frente aos olhos, será que não é necessário que tentemos modificar o nosso olhar?

Destruição de uma comunidade
Thiago Calsa Nunes
Mais, ô mon couer, entends le chant des matelot!
Stephan Mallarmé
Acato, aceito
Armas não é preciso
Para fazer entender
A Lei, a Ordem, o Progresso

O trator vem e desmonta
Tentativas de lembrança, possibilidades de família, o nome dos vizinhos
Destrói
Times de futebol com goleiro e zaga, discos de vinil e outros
Destroça
Fitas-cassete gravadas de momentos, brinquedos de criança mantidos pelo tempo em gerações

Transforma a escavadeira
Uma manhã de sábado em noite de quarta ou terça
Na guerra - barulhos de destruição
Alternando-se a sussurros
Silêncios que sucedem profundas destruições
E somente. Sem nada. Sem ninguém.

Rompem-se os fios elétricos de luz
E estouram todos os encanamentos
Sedimentos dessa ordem antiga
A inundar e formar um novo rio

Viajo por este mar
De restos da renovação industrial
Vendendo produtos fósseis de sentimentos
Fragmentados, partes incompletas
O que sobrou
Canções de marinheiros em naufrágio

Um comentário:

  1. Caramba, cara, o relato me chocou e entristeceu profundamente. Sobretudo quando falas da parte midiática, o site que apresentava o vídeo da derrubada ao som de música clássica me deixou arrasado pensando na sociedade doente em que vivemos. Há pouco tempo, derrubaram duas casas na comunidade em que o Negro Cosme está trabalhando e apenas o Paulo pôde ir lá quando aconteceu. Eu (e com certeza todos os outros negros) fiquei em casa desesperado, sem saber o que fazer, querendo estar lá quando vários fatores me impediam, sentindo-me completamente impotente. Mas lá, apesar do pasmar e desorganização inicial, Paulo nos relatou que havia um grande número de pessoas ao redor dos tratores. Estavam parados, abismados, sem saber o que podiam fazer, mas estavam; isso faz toda a diferença. Não faltam estratégias de cooptação daqueles que estão contra nós nessas lutas da vida. No nosso projeto anterior, era a Vale do Rio Doce que oferecia várias vantagens aos líderes das comunidades; hoje encontramos o Poder Público e as construtoras oferecendo mais dessas vantagens ilusórias às pessoas que, no auge no desespero, se agarram a qualquer coisa que mesmo que de longe lembrem uma tábua de salvação e esquecem de agarrarem uns nos outros. Há pouco tempo aconteceu com uma comunidade daqui, o Novo Angelim, exatamente o mesmo que ocorreu com Chocolatão: foi removida para um lugar nas fronteiras de São Luís e isso foi alardeado como um grande benefício.
    Por que as melhores áreas de moradia são negadas aos pobres? Por que as áreas do "Minha casa, minha vida" destinadas às rendas mais baixas ficam fora de qualquer zona urbana (pelo menos, é assim aqui em São Luís)? E qual o nosso papel diante disso, onde a não-interferência das AJUPs bate? Porque depois de toda problematização, oficinas, diálogo ainda pode parecer mais atrativo para uma pessoa uma cesta básica do que uma ocupação na prefeitura para tentar conseguir algo - e posso eu censurá-la por isso? Podemos nós?
    Fico realmente triste diante de tudo isso e espero de verdade que exemplos como esse ocorram cada vez menos. Minha solidariedade ao pessoal do GAJUP e aos moradores da Vila Chocolatão e parabéns pela luta que tanto nos inspirou e que deve continuar sempre, sempre enquanto houver sangue pulsando, sempre enquanto houver pelo que lutar.

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