quinta-feira, 8 de julho de 2010

Niilismo e movimento popular (ou: Entre céticos e cínicos, eu fico com o povo)

Dando espaço para a necessária radicalidade da assessoria jurídica popular, trago aos leitores do blogue um texto do advogado e militante do movimento popular em Curitiba, Felipe Rigon Spack, que com as luvas próprias do pugilato abre os supercílios dos céticos e, a um só tempo, sai-se exitoso do pancrácio contra os cínicos. Entre céticos e cínicos, a classe média; para além de a inanição ou de a justificação do que sempre foi, o movimento popular.



Niilismo e movimento popular

Por Felipe Rigon Spack



Pense globalmente, sofra localmente

Uma atitude realmente perturbadora no capitalismo contemporâneo é oferecer uma solução individual para um problema global. Após assistirmos a vídeos chocantes sobre o derretimento das geleiras, sobre o trabalho escravo na China e sobre o crescimento dos lixões das nossas cidades, somos apresentados a uma solução simples: separar o lixo, votar consciente nas próximas eleições ou parar de comer carne. É como se nossa relação com a natureza e a sociedade não tivesse nenhum intermediário: desaparecem os Estados, as indústrias, as grandes fazendas, as plataformas de petróleo, as redes de supermercado etc. Somos nós, aqui e agora, os únicos responsáveis pelo destino dos Pandas, das crianças etíopes ou do próprio Universo. Assim, a Shell e a Halliburton são tão culpadas quanto nós pelas desgraças da humanidade, e deveríamos nos engajar em alguma espécie de “ativismo cidadão” para “conscientizar” o próximo rumo a um mundo mais democrático.

É claro que essa denúncia histérica de problemas gigantescos acompanhada por uma alternativa medíocre de ação só pode levar, com o tempo, a duas atitudes: o cinismo completo ou o niilismo. Os cínicos simplesmente rejeitam a denúncia dos problemas: isso não existe ou não importa, o que vale é viver o aqui e o agora. Carpe diem! Os niilistas, mais interessantes, aderem a algum tipo de escapismo e vivem seus dias com uma espécie de auto-lamentação irônica, em que repetem o mecanismo ensinado desde a escola: o problema existe e é terrível; temos responsabilidade, mas não há nada que possamos fazer que realmente funcione.


A atitude niilista está mais correta do que a cínica. Realmente, os problemas existem. E, realmente, doar dinheiro para os pandas ou para a Legião da Boa Vontade não vai acabar com a extinção dos seres humanos ou dos animais queridinhos da mídia. Contudo, existe muita vida para fora do niilismo, e ela quer ser escutada.


Privilégio da classe média

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a educação liberal de esquerda baseada na Folha de São Paulo – um exemplo perfeito do estilo “pense globalmente, aja localmente” - atinge apenas uma pequena parcela da população: a classe média. Embora filmes como Cidade de Deus digam o contrário, para os moradores da periferia das grandes cidades não resta, neste mundo, apenas o papel de aparadores de balas e vítimas de estupro. Há, nos bairros proletários, uma grande necessidade diária de luta, e portanto uma vida sofrida e difícil, mas nem um pouco entediante. O trabalho, a moradia, o transporte e a saúde são problemas diários, que só podem ser resolvidos coletivamente. Na luta proletária, somem os subjetivismos lamentadores e ganha espaço a prática objetiva e revigorante. Não faz sentido para um trabalhador se preocupar com o sofrimento dos pandas e lamentar o fim do Joy Division, se a ordem do dia é queimar pneus para evitar mais atropelamentos em seu bairro.


Bairro proletário, de Curitiba.



Essa realidade de luta é bastante diferente do “ativismo” puramente de classe média. A atuação de grupos ongueiros, vegetarianos, virtuais etc. facilmente esquece que há inimigos intermediários entre a “devastação da humanidade” e o “consumo de carne”, pois lida com problemas que raramente afligem de maneira imediata alguma potência econômica. A luta dos moradores das periferias ou dos empregados das fábricas por melhores condições de vida, porém, é logo acompanhada por ameaças de prefeituras e patrões incomodados. Essas ameaças, por sua vez, demandam uma organização ainda mais elevada dos moradores ou dos trabalhadores, que trará novas ameaças e assim por diante. Conforme a luta avança, todo o sistema intermediário entre a devastação da humanidade e nossa vida cotidiana dá as caras – e ele é muito mais brutal do que o departamento de propaganda do Greenpeace é capaz de conceber.

Pá de cal no niilismo

Como ex-integrante niilista da classe média crescido em um ambiente “Folha de São Paulo”, posso seguramente afirmar que a participação no movimento popular é capaz de pôr um fim ao niilismo. A responsabilidade com a luta popular redefine o gozo sem limites que o sistema impõe à classe média das grandes cidades. Os sábados de manhã deixam de ser o momento da ressaca para serem o momento da reunião na associação de moradores ou de outras atividades importantes. Por sua vez, o contato com a história pessoal dos trabalhadores e a amizade que surge durante a luta lançam uma pá de cal sobre a visão cínica ou niilista da vida.

Com a absoluta certeza, a participação no movimento popular afastaria grande parte das depressões, das dores de cotovelo e das náuseas com o “absurdo da vida”, já que todos esses sofrimentos são pequenos privilégios de classe, que tendem a se dissolver com o contato regular com a luta das classes mais exploradas. Da mesma maneira, ajudaria a recuperar um sentido histórico para a vida, para além do fukuyamismo hoje dominante, em que o nada é louvado de maneira incessante como a única certeza possível. Deixar as baladas “anos 80” e o eletrorock pode parecer um grande sacrifício para alguns, mas certamente será recompensado por uma grande releitura da realidade – maior ainda do que aquela que Foucault e Deleuze são capazes de proporcionar.

Mas é claro que a militância no movimento popular não deve ser encarada com fins “terapêuticos”, isto é, uma nova “moda” da classe média. Pelo contrário: os trabalhadores e moradores das periferias têm grande necessidade do conhecimento acumulado pela classe média, o que traz grande importância e responsabilidade para os apoiadores de sua luta. Os advogados, jornalistas, médicos, psicólogos, engenheiros etc. tiveram a oportunidade de se apossar de conhecimentos técnicos sistematicamente proibidos aos moradores da periferia ao longo de seus dezesseis ou mais anos de estudo, financiados pelo trabalho de toda a sociedade. Esse conhecimento deve ser instrumentalizado em benefício da luta.

Organizações maiores, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, têm uma clareza tão grande dessa necessidade que, além de criarem uma Universidade para seus próprios militantes, a Escola Florestan Fernandes, ainda promovem sistematicamente os Estágios Interdisciplinares de Vivência (EIVs), mostrando aos jovens de classe média que existem alternativas ao nada democrático-liberal que impera nas páginas dos periódicos nacionais.

Para finalizar, gostaria de lembrar que o niilismo pode ser o sinal de um intelecto vigoroso, que através dele se defende dos convencionalismos da pátria, da religião, da família e do politicamente correto. Contudo, como toda defesa, se não for rompida rumo a um estágio mais avançado de atuação, tende a causar estagnação e sofrimento. A maior contribuição do movimento popular à classe média, portanto é a de dar um sentido à sua existência, baseado em uma necessidade que, em certos contextos, é de compreensão imediata: a necessidade de libertação.



"Morro da favela", de Tarsila do Amaral






Conferir o blogue do Felipe Spack: Direito de Esquerda

5 comentários:

  1. Hum...

    Sabe o que eu achei bacana nesse texto? Ele lembra de onde normalmente vem quem se envolve com a AJUP: classe média. E isso é importante porque a realidade que se vivencia nela é bem diferente daquela vivida por aqueles que serão procurados pelos Assessores para a construção de um trabalho conjunto. Parece óbvio, mas é um fator que tem que ser lembrado para que o assessor e a assessora reconheçam suas próprias limitações e possam trabalhá-las de modo a viabilizar o contato...

    E ainda que a Assessora e o Assessor não tenham vindo da classe média ou alta, o estudo exclusivista a que teve acesso foi formatado de acordo com interesses dominantes. Pelo menos boa parte dele. É algo que se internaliza e que deveria ser reconstruído sempre que se percebesse que este conhecimento estivesse se conflituando com a realidade que o Assessor decide encarar, o(s) grupo(s) com o(s) qual(is) decide se comprometer.

    Bom, quanto ao benefício de ordem existencial...É uma consequência boa e certamente contribui para que o Assessor e Assessora prossiga. Mais uma consequência, mas não a única...

    Este comentário que faço e que trata especificamente sobre AJUP eu gostaria de oferecer aos meus amigos do CORAJE-PI. Brecha para agradecer pelas experiências proporcionadas neste ano e muita força nesta nova etapa que está para começar!

    Grande xeru!


    Ps. Mas o Golfo do México, a destruição dos cerrados, entre outros, ainda está me preocupando profundamente, sim. Pensar globalmente...

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  2. Olá

    Felipe, me identifiquei bastante com o teu texto e compartilho de algumas das tuas reflexões.
    Para iniciar, quero te dizer que tenho uma ressalva quanto às relações virtuais, afinal, estamos tendo-a neste momento. Precisamos ressignificar estes espaços alternativos de comunicação - virtualidade de combate.
    Quanto a classe média, acho que a militância não serve como alento nenhum. Aliás, nossa opção política descaracteriza nossa posição material de classe. Se pudermos radicalizar ainda mais neste sentido, melhor. Estou me referindo à militância do "estar junto", nos despirmos de nossa classe (num sentido poético análogo a Drummond).
    Por fim, quero lembrar a tod@s sobre uma discussão necessária nestes tempos de marasmo: financiamento. Como vamos nos manter? Que organicidade vamos construir? Quais as nossas alternativas de auto-financiamento?

    Parabéns pelo teu texto, Felipe. Seja muito bem -vindo!
    Abraços

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  3. A meu ver, o texto do Felipe apresenta uma realidade totalmente dissensuada no meio universitário que se propõe progressita *ou designação que o valha). Todos nós passamos por esta tentativa escapista e pouco ciosamente sempre imoputamos a nós mesmos ou a um exacerbado pessimismo a culpa por nossa desesperança. Ocorre que desesperança é o outro lado da moeda da esperança. Aposta-se numa (esperança - "pense globalmente!"), vive-se outra (desesperança - "sofra localmente!)". É preciso agir (agirança...) global e localmente. O individual é sempre abstrato. O concreto é o todo! Portanto, ongueiros, vegetarianos, virtualistas estão fadados às depressões, às dores de cotovelo, pois seu agir é esperar que o global aconteça, tirando o corpo fora, apenas agindo localmente.

    No entanto, é claro, devo ressalvar minha discordância de fundo, com relação ao Felipe: não só a atuação com o movimento popular não serve de fármaco ou terapia, como também não pode haver nessa relação nenhuma aposta messiânica. Os conflitos são um UNIVERSAL! Ainda mais, numa sociedade conflitiva. O pequeno-burguês (objetivamente não proletário) e o proletário (muitas vezes, subjetivamente pequeno-burguês) têm muito em comum. E é preciso sempre estat atento a isso.

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  4. Olá, amigos!
    Apreciei bastante os comentários. Agradeço a publicação e a acolhida pelo blog! Quando puder, contribuirei!

    Em breve, estamos querendo pensar em um redimensionamento da assessoria jurídica popular em Curitiba. Ribas, se vier para cá, será bem-vindo nessa nova empreitada!

    Abraços

    Felipe

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  5. O que eu ainda gosto no niilismo é que ele pelo menos é etnocentrista...

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